Toda a Verdade Sobre o Guimarães das Duas Caras
A propósito da estátua do Guimarães que toma conta da praça da Oliveira, muito se tem dito em desabono do carácter dos vimaranenses. Era em Suaken, no sul de Marrocos, no ano de 1578, quarto dia do mês de Agosto, em que se travava a para sempre memorável e trágica batalha de al-Kasr al-Kebir. A peleja ia rija, com os ventos a correrem de feição às hostes portugueses, quando começa a correr a notícia de que sultão Mulei Maluco tinha sido varado por um tiro, indo entregar a alma a Mafamede. Já os gritos de vitória! vitória! vitória!atroavam, em uníssono, nos céus marroquinos, quando os súbditos de D. Sebastião foram apanhados de surpresa pela inopinada arremetida da infantaria mourisca, saída de onde só Mafoma sabia. Do que se passou a seguir, os relatos não coincidem. Dizem uns que se escutaram incitamentos à resistência: Ter! Ter!
Outros contaram que os gritos que se ouviram ordenavam a retirada:Retira! Retira!
Por último, há quem garanta que a ordem não era para resistir, nem para retirar, mas sim para regressar (mas ninguém soube dizer para onde): Volta! Volta!
O que parece certo é que todos os relatos estavam dentro da verdade e que todos aqueles gritos ecoaram em simultâneo. As vozes misturavam-se, pois, vindas de todas as direcções:
Ter! ter! Volta! Volta! Retira! Retira!
Os que se acharam naquela babel ficaram, naturalmente, confundidos, baralhados e, até mesmo, algo indecisos. O caos e a desordem instalaram-se entre as hostes de Sebastião. Com tanta balbúrdia e tamanho alvoroço, as tropas portuguesas logo se viram cercadas e vindimadas pela arcabuzaria sarracena. E então, as areias quentes de al-Kasr al-Kebir tingiram-se de vermelho, lavadas pelo sangue dos portugueses. Com a derrota eminente, narram as crónicas que apenas Sebastião e um pequeno grupo de homens resistiam. Ficaram para a História as palavras de D. João de Portugal: Que pode haver aqui que fazer, senão morrermos todos?
Muito se tem escrito sobre o sentido da resposta que então lhe deu D. Sebastião:
Morrer, sim, mas devagar! O que sucedeu a seguir é um mistério que, até ao dia de hoje, ficou por contar. A certa altura, levantou-se um vento agreste e sufocante, fazendo cair sobre al-Kasr al-Kebir uma névoa seca e espessa, um limometeoro, enfim, uma tempestade de areia. D. Sebastião, que não tinha vontade de morrer depressa, aproveitou o ensejo para abandonar o campo de batalha, acompanhado apenas por sete dos fidalgos que o acompanhavam. Entre os que seguiram o rei fugitivo, ia um BaltazarPacheco de Alcoforado, a quem, segundo uso militar antiquíssimo, chamavam o Guimarães, por ser natural desta santa terra.
Seguiram rumo ao Sul, pelas quentes e secas areias do Saara, escondendo-se nos dias claros e tórridos daquele Agosto quinhentista, caminhando nas noites gélidas, com os seus passos guiados pela linha do mar e pela cintilação das estrelas. Entre eles, já não havia rei, nem súbditos, todos eram iguais: cansados, esfomeados, sequiosos e fugitivos. Não se sabe quantos dias andaram nesta retirada. No limite das forças, tiveram de tomar uma decisão dramática, empurrada pelo instinto de sobrevivência. Precisavam de comer, mas não tinham o quê. Decidiram que um deles seria sacrificado, para que os outros se pudessem salvar. Tiraram as sortes, e a mais aziaga calhou ao rei. De nada lhe adiantou invocar a sua majestade nem o direito divino. Foi esquartejado e repartido entre os sobreviventes, que se banquetearam com as carnagens reais.
Mais uma vez, como tantas outras, o destino zombou dos homens. Por uma estranha ironia, quando ainda estavam mergulhado no torpor pós-prandial que os atacou depois de tão extraordinária refeição, avistaram ao longe uma nau, que só podia ser portuguesa. Correram à praia, acenando, furiosos, com a bandeira real que um deles tivera a lembrança de trazer consigo.
Foi assim que se viram de regresso a Portugal. Antes de embarcarem, juraram guardar segredo quanto ao acontecido com o rei D. Sebastião, o qual lhes poderia ter sabido bem melhor, tivessem eles sal e pimenta. Como a tragédia daqueles homens parecia não ter fim, quando já chegavam a Lisboa, depois de atravessarem todo aquele mar, levantou-se tamanha tempestade, que fez o navio naufragar. Nenhum deles se salvou, a não ser o Guimarães, que deu à costa na praia de Carcavelos. Em Guimarães, Baltazar Alcoforado foi recebido como um herói. Era ele, afinal, um estóico sobrevivente de uma aventura insana cujas consequências Portugal pagaria com a sua própria independência. Nunca contou a ninguém a verdade do que se tinha passado com ele naquela praia da Mauritânia.
A ninguém, excepto ao padre Inácio Laranjo, claro, mas foi como se o não tivesse contado, posto que o assunto ficou resguardado por segredo de confissão. Quando morreu, decidiram fazer uma estátua que perpetuasse a memória daquele herói vimaranense. Na altura, alguns estranharam o alvitre insistente e enigmático do Padre Inácio, homem que tinha tanto, ou menos, de piedoso como de gaiteiro, para que o representassem com uma cara na barriga. O mestre-pedreiro não viu nenhum mal na pilhéria, e fez-lhe a vontade.
E lá ficou o Guimarães, para a posteridade, imponente, sereno e majestoso. Ao contrário do que por aí dizem, não tem duas caras. Mas tem o rei na barriga.
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